A experiência que tive ao presenciar o premiado musical sobre o amor esquecido

Nova Iorque, 03 de março de 2020
Esse ano, tive a oportunidade de assistir ao musical “Hadestown”, com música, letra e libretto escritos pela incomparável Anaïs Mitchell.
O musical foi lançado na Broadway na temporada de 2019, nomeado a 13 Tony Awards (o Oscar do teatro) e acabou levando 8 deles para casa, incluindo “Melhor Musical”, “Melhor Música” e “Melhor Direção”. O espetáculo também conquistou o Grammy de “Melhor Álbum de Teatro Musical” e muitos outros prêmios.
O libretto foi inspirado no clássico da mitologia grega de Orfeu e Eurídice. Tendo Reeve Carney interpretando “Orpheus” e Eva Noblezada como “Eurydice”, o musical captou a essência do amor incondicional compartilhado pelos dois personagens.
A montagem é narrada por um dos 12 deuses gregos: Hermes, o Deus Mensageiro. O personagem é incorporado pelo merecidíssimo vencedor do Tony de “Melhor Ator Coadjuvante”: André De Shields.
Quando entrei no teatro, imaginei que veria mais uma versão da história que, como todas as outras, me tocariam, mas não imaginei que seria de uma forma tão diferente e intensa. No mundo projetado pela peça, observamos uma realidade que não conta com as estações anuais. Tudo o que temos são os opostos verão e inverno. Como no conto original, os dois personagens principais se conhecem e se apaixonam. Orfeu conta a Eurídice que está compondo uma música, com um som tão bonito, que será capaz de trazer a primavera de volta. Ela o desafia, falando que não acredita que outras estações poderão existir, pois só ouvia falar delas em contos de fantasia. Orfeu, aceitando o desafio, pega sua guitarra acústica, que nessa montagem substituiu a “Lira”, e canta a melodia que acabamos ouvindo várias vezes durante o decorrer do espetáculo. No acorde final da canção, uma rosa (o logo do musical) brota em sua mão – esta foi a primeira vez em que me arrepiei.
E as surpresas apenas continuaram...
O musical demonstra que é, sim, importante focar em seus objetivos e alcançá-los; porém, que é ainda mais importante apreciar e preservar as pessoas especiais que compartilharão essas mesmas conquistas com você
Amber Grey, para mim, foi a estrela da noite, interpretando “Perséfone”, esposa de Hades, que foge do inferno durante seis meses do ano para festejar e trazer o verão e a felicidade para o mundo. Quando seu tempo nas terras de cima se esgota, Hades (Patrick Page) vem buscá-la. Passando-nos a infeliz realidade de que seu relacionamento não está em seus melhores dias, ela volta para Hadestown com seu marido.
O tempo progride e o inverno se aproxima. Orfeu se torna tão dedicado em finalizar a sua composição que acaba deixando sua parceira de lado. A cena de Eurídice tentando chamar sua atenção e não recebendo nenhuma reação é pesada, e demonstra a realidade de várias mulheres da sociedade atual que acabam vivendo um relacionamento de uma “pessoa só”. Porém, a personagem é forte e, mesmo com uma tempestade a caminho, ela sai sozinha para conseguir lenha para os aquecer e comida para sustentá-los. A tempestade a pega.
Quando Orfeu acorda de seus pensamentos contínuos e percebe a ausência de sua amada, ele avista Hermes, que conta que Eurídice foi levada a Hadestown pela tempestade. Nesse momento, Reeve Carney brilhou na cena da música “Wait For Me”, na qual desbrava todo o caminho para o inferno, na esperança de trazer sua musa de volta.
O Segundo ato mostra a realidade do outro casal: Hades e Perséfone e o quanto eles passam por uma fase difícil em seu matrimônio. O mesmo abre os olhos do expectador para o motivo real da história: o amor esquecido. Quando Orfeu chega no inferno e avista Eurídice trabalhando no reino de Hadestown, ele vai ao seu encontro. Ela não lembra nem do próprio nome, mas ele não foi apagado de suas memórias. Hades avista o herói e pergunta o que ele está fazendo em suas terras. Perséfone fala que o conhece do mundo superior e que ele é apenas um menino apaixonado. A frase específica que, na minha opinião, marcou o musical foi quando a deusa do submundo fala “Ele tem um amor por ela que um dia você teve por mim”.
Hades recebe a informação de que Orfeu terminou a música que trará as estações de volta. Ele, rindo, pede para o intruso apresentar a canção para ele. Quando ouvimos “Epic” pela última vez no show, dessa vez terminada, percebemos que a letra não falava do compositor e sua amada, mas sim dos dois deuses do submundo. Com uma melodia penetrante, Orfeu convence Hades de que o amor pode ser resgatado e o rei de Hadestown o deixa ir embora com sua amada.
Como conhecemos no conto da mitologia, a condição é de que os dois amantes devem caminhar um atrás do outro e que Orfeu não pode olhar para trás, para ver se ela ainda o segue, até chegarem ao seu destino. O musical não conta com um final novo para essa história.
O musical fala sobre amor incondicional. Sobre reconhecer seus desafios. Sobre sacrifícios. O musical demonstra que é, sim, importante focar em seus objetivos e alcançá-los; porém, que é ainda mais importante apreciar e preservar as pessoas especiais que compartilharão essas mesmas conquistas com você.
Posso dizer, confiante, que esse show foi um dos mais tocantes que já tive a oportunidade de assistir. Contando com um elenco incrivelmente talentoso, músicos muito competentes e uma equipe criativa revolucionária, Hadestown mereceu todos os prêmios que conquistou. Se você tiver a oportunidade de vir à Nova Iorque, este é, com certeza, o show que eu mais recomendo assistir atualmente. E como Hermes nos lembra no número final do musical “É uma história triste, mas que contaremos mais uma vez”.
Por Pedro Coppeti - barítono formado na AMDA (American Musical and Dramatic Academy), um dos mais importantes conservatórios de artes de representação dos EUA e do mundo.