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TOCAR E LUTAR

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Adicionado no dia 24 de julho de 2018

Ao receber o convite de Carlos Rodriguez para expressar algo neste espaço, nada mais oportuno do que escrever sobre a minha mais recente realização artística, que consistiu em um concerto e a gravação de um CD autoral com

a Orquestra Sinfónica de Venezuela, em Caracas, entre os dias 9 e 15 de julho

de 2018. Ainda estou impregnado das vibrações dessa experiência, da troca artística com os músicos da Sinfónica de Venezuela, assim como das trocas humanas com diversos personagens da sociedade venezuelana. Isso no contexto de um país assolado por uma crise de vasta magnitude, e que atinge

a sua população de forma marcante.

José Antonio Abreu (1939-2018), músico e maestro, mentor do movimento

“El Sistema”, iniciado em 1975, diz, em uma fala no TED, disponível no Youtube 1, que, diante da crise espiritual dos dias de hoje, “só a arte e a religião podem dar uma resposta adequada ao sentimento coletivo dos povos, às aspirações profundas do homem, e às exigências históricas de nosso tempo” e que

o “imenso universo espiritual que a música produz, de forma inerente, acaba por vencer a pobreza material”.  Assim, lutou para concretizar sua visão, a de levar a música a todos os extratos da população venezuelana, especialmente aos jovens menos favorecidos. Com o seu projeto, fez as agrupações orquestrais serem disseminadas pelo país, tornando-as laboratórios para

o desenvolvimento de milhares de jovens, fazendo da música um patrimônio

de toda a sociedade. O sucesso desse movimento de transformação cultural profunda vem chamando a atenção do mundo desde os anos 2000.

Ao trabalhar com um grupo no qual praticamente todos os seus integrantes são pertencentes ou oriundos do El Sistema, pude sentir a força do legado

do maestro Abreu: músicos imbuídos do espírito de solidariedade, comunhão, interdependência e generosidade através da arte. Os trabalhos começaram

no dia 9 de julho, pela manhã, com um ensaio de três horas na sala Rios Reyna do teatro Teresa Carreño, para uma leitura inicial do repertório, onde trabalhamos as obras Canauê, Abertura Brasil 2012 Bis e Toronubá. À tarde, tivemos a primeira sessão de gravação no auditório do Colégio Emil Friedman, local com excelente acústica. Prosseguindo, de terça a sexta-feira, nas tardes, ensaiamos e gravamos, além das já citadas, a Abertura Brasil 2018, Concerto para Flauta e Cordas, Brasil Amazônico, e Rapsódia Maracatu, sempre em sessões

de 3 horas com 30 minutos de intervalo. O concerto 2 ocorreu no sábado,

às 17h, e nele, a Abertura Brasil 2012 Bis e a Abertura Brasil 2018 foram apresentadas em primeira audição. O solo no Concerto para Flauta esteve

a cargo de James Strauss, destacado flautista brasileiro radicado em Caracas.

No concerto, o grupo estava mais relaxado e com o repertório mais amadurecido, e poucas vezes escutei essas obras tão próximas de minha concepção musical. Esse concerto nos trouxe uma exitosa realização artística, coroando os trabalhos da semana. Ao final, a calorosa plateia, com duradouros aplausos, manteve a orquestra em pé, fazendo-me voltar três vezes ao palco. 

A gravação do CD foi um outro aspecto de nosso trabalho. Disse ao engenheiro de gravação, Danilo Alvarez (vencedor do Grammy Latino 2017), que gostaria de ter tomadas longas, e que o CD seria o registro do processo de construção das interpretações das obras para o concerto final. Assim, privilegiamos o aspecto musical e expressivo, e evitamos aquele tipo de sessão de gravação picotada,

na qual há demasiada preocupação com a perfeição técnica, com repetição de pequenos trechos, quando, muitas vezes, acaba-se negligenciando a música por detrás das notas. Nas sessões de gravação, após a leitura e ensaio inicial, fizemos três ou quatro tomadas grandes de cada obra, eventualmente repetindo alguns trechos mais problemáticos. É preciso ainda processar todo o material gravado e realizar os mapas de edição. Se o CD não ficar impecável do ponto de vista da execução técnica, visto o curto tempo para leitura, ensaio e gravação de obras inteiramente novas para o grupo, estou certo de que teremos uma expressiva gravação, o documento sonoro de um processo artístico guiado pela concepção do próprio autor.

Neste momento, as dificuldades da Venezuela são inúmeras, devido a uma grave crise política e institucional, hiperinflação, com o consequente empobrecimento extremo da população, e crise de abastecimento, que leva

à falta de diversos itens básicos. A situação é crítica, e tem levado milhares de venezuelanos a um forçado êxodo do país. Diante dessa dura realidade,

o imperativo dos músicos que estão na Venezuela é resistir, tocar e lutar. 3 Tocar e lutar é o lema do El Sistema, e é o que os músicos venezuelanos têm feito com afinco desde muito tempo, deixando o seu exemplo para o mundo. Deixo aqui minha gratidão e admiração pelos músicos com os quais trabalhei na Venezuela que, apesar das nítidas dificuldades circundantes, demonstraram grande devoção e respeito à arte, empenhando-se ao máximo para o êxito desse projeto.

Links

  1. TED – José Antonio Abreu https://www.youtube.com/watch?v=Uintr2QX-TU

  2. Divulgação do concerto com a Orquestra Sinfónica de Venezuela. contrapunto.com/noticia/la-orquesta-sinfonica-de-venezuela-inicia-su-serie-internacional-con-melodias-brasileras-212899/

  3. Tocar y Luchar, documentário que expõe com profundidade e sensibilidade o El Sistema. https://www.youtube.com/watch?v=oIGUXapsI-I&t=2199s

 

 

Dimitri Cervo (1968) é autor de obras como Toro-Lobiana, Renova-te, Abertura Brasil 2012, e reconhecido como um dos mais inventivos e destacados compositores brasileiros. Além da composição sua atuação abarca, como intérprete de sua obra, a regência e o piano. Em sua trajetória destacam-se a estreia e reapresentações de obras como Abertura Brasil 2012 e Abertura Rio 450 Anos pela Orquestra Sinfônica Brasileira, o Concertante para Tímpanos pela Orquestra Petrobras Sinfônica, e Toronubá na turnê nacional da Sinfônica de Sergipe. Em 2017 regeu Toronubá frente à Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, e realizou ao piano solista, a estreia da Rapsódia Maracatu, para piano e orquestra, obra encomendada pela FUNARTE para a XXII Bienal do RJ, realizada na Sala Cecília Meireles. Em 2018, ano em que o compositor completa 50 anos, Toro-Lobiana recebeu estreia norte-americana, além de diversas apresentações, pelo BoCoCelli, grupo de cellos do Conservatório de Boston, tendo sida também apresentada em Viena. Canauê foi gravada no CD de compositores brasileiros a ser lançado pela OSPA, e a Abertura Brasil 2018 será apresentada pela primeira vez no Brasil pela OSB.

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